To view this story in English, please link here.

No outono de 1521, Gazi Husrev-beg, recém-nomeado governador da província otomana da Bósnia, cavalgou à frente de um destacamento que partiu de Istambul em direção à cidade provincial de Sarajevo, às margens do rio Miljacka.

A nomeação havia sido um presente ao general de 41 anos dado por seu primo, o sultão Solimão i ("o Magnífico"), que considerava Husrev-beg (rus-rev-bei; o sufixo beg é um título honorífico, semelhante ao britânico "Sir") um dos mais confiáveis oficiais militares e diplomatas.

O novo governador provavelmente entrou em Sarajevo cruzando uma ponte de pedra sobre o Miljacka, bem a leste de Careva Džamija (ou Mesquita do Sultão), entre as primeiras estruturas construídas por seu antecessor e fundador de Sarajevo, Isa-Beg Ishaković (i-cha-co-vitch). Vindo logo a seguir, empacotados em carroças carregadas com seus pertences, estavam muitos livros e manuscritos de Husrev-beg, alguns dos quais ele acabou legando à posteridade. Com o passar do tempo, seu legado cresceria a ponto de se tornar a maior biblioteca de manuscritos e documentos islâmicos dos Bálcãs, a mais ampla coleção de manuscritos otomanos fora da Turquia e uma das maiores bibliotecas de seu tipo de toda a Europa.

<p>Moradores de Sarajevo caminham pela Ponte do Imperador, a mesma via por onde Jahić e sua equipe passaram sob o ataque de atiradores. A Mesquita do Sultão, lar da biblioteca de 1935 a 1992, pode ser vista ao fundo.</p>

Moradores de Sarajevo caminham pela Ponte do Imperador, a mesma via por onde Jahić e sua equipe passaram sob o ataque de atiradores. A Mesquita do Sultão, lar da biblioteca de 1935 a 1992, pode ser vista ao fundo.

Cerca de cinco séculos mais tarde, em 1992, Mustafa Jahić, então diretor da biblioteca e mais recente na linha de estudiosos a quem Husrev-beg havia confiado seu legado, aproximou-se cautelosamente da extremidade sul da famosa ponte juntamente com alguns colegas. Levando caixas com o precioso acervo da biblioteca próximo a seus corações, em sentido literal e figurado, eles calculavam as chances que tinham de atravessar o rio vivos. Nos edifícios e colinas à sua volta, franco-atiradores sérvios esperavam para exercitar sua pontaria em qualquer um que se expusesse nas vias públicas, que viriam a ser conhecidas durante o cerco de Sarajevo de 1992 a 1995 como "becos dos atiradores". Se isso acontecesse novamente, eles tomariam a mesma atitude. E novamente, ao longo dos próximos três anos, por toda a cidade sitiada.

Jahić e seus colegas assumiram aquele risco para preservar parte do patrimônio cultural sobrevivente de sua cidade e recém-declarado país. Estabelecido em março de 1992 após a ruptura da multiétnica Iugoslávia, a Bósnia e Hezergovina se transformou quase imediatamente em um campo de batalha. Em Sarajevo, as populações bósnia muçulmana e croata católica se tornaram alvo de nacionalistas sérvios ortodoxos apoiados pela vizinha Sérvia. Além de ter matado cerca de 14 mil pessoas em Sarajevo – 5.400 delas civis – a milícia sérvia também atacou sistematicamente a identidade cultural da Bósnia: em agosto de 1992, a Biblioteca Nacional e o Instituto Oriental, as duas maiores bibliotecas de Sarajevo, foram reduzidas a cinzas.

Jahić estava determinado a salvar o legado de Gazi Husrev-beg desse mesmo destino. Com a ajuda de outros que compartilhavam de sua devoção à biblioteca e seu compromisso com a história cultural da Bósnia, o dedicado bibliotecário liderou o transporte de grande parte do acervo de um esconderijo a outro por toda a guerra até que, em 2014, as obras finalmente pudessem ser guardadas em um edifício totalmente novo e seguro, localizado a alguns passos do local da biblioteca original fundada por Gazi Husrev-beg.

Esta é a história dos dois, um homem que considerava livros e conhecimento legados essenciais e outro que arriscou sua vida para preservá-los.

No ano em que Gazi Husrev-beg assumiu como governador, Sarajevo era classificada nos registros otomanos como uma kasaba, o que significa que era maior do que uma aldeia, mas menor que uma šeher, ou cidade. Fundada por Ishaković por volta de 1462, ela se localizava nos limites do reino medieval bósnio de Vhrbosna, conquistado pelos otomanos uma década antes. Embora contasse com o abrigo das montanhas à sua volta e tivesse um bom abastecimento de água graças ao Miljacka, a cidade era ao mesmo tempo potencialmente vulnerável a agressores, que podiam escalar aquelas mesmas montanhas para cercar o vilarejo situado em um vale. Além disso, sua localização estratégica, a uma distância de marcha das "fronteiras movediças do império com Veneza e a monarquia dos Habsburgo", conforme observou o historiador Robert J. Donia, tornava-a um centro comercial, administrativo e militar cada vez mais importante para a expansão otomana rumo à "Rumélia", os Bálcãs.

"Aquilo que está escrito perdura; o que é lembrado desaparece."

—Mula-Mustafa Ševki Bašeskija
Ljetopis o Sarajevu 1746-1804 (Crônica de Sarajevo, 1746 a 1804)

A cidade recebeu seu nome depois que a saraj (sar-eie, ou corte real) foi construída por Ishaković às margens sul do rio e perto de um grande ovaši (o-va-chi, ou campo); portanto, Sarajevo é uma contração eslava de Sarajovaši. O fundador construiu também uma fortaleza sobre um afloramento rochoso a leste, o portão natural da cidade onde o Miljacka esculpe seu leito por entre as montanhas. As ruínas que restam dessa fortaleza de pedra, juntamente com as posteriores defesas otomanas, ainda pontuam as montanhas arborizadas da cidade como dentes quebrados.

Foi Gazi Husrev-beg quem, ao longo de 20 anos, ajudou Sarajevo a tornar-se uma šeher. Esse foi um trabalho feito sob medida para um general diplomata de meia idade. Nascido em 1480 na cidade grega de Serres, Husrev-beg era filho de Ferhad-bey, governador otomano local nascido na Bósnia, com a sultana turca Selçuka, filha do sultão Beyazid ii. As conexões reais de sua mãe o tornaram o primeiro primo do sultão Solimão, o Magnífico. Durante o período em que governou a eyalet (província) da Bósnia, território que hoje equivaleria aproximadamente à Bósnia e Herzegovina, Sarajevo cresceu a ponto de tornar-se a terceira maior cidade europeia do império, logo após Tessalônica e Edirne. Esse período foi chamado de "Idade Dourada" de Sarajevo.

Com a transformação da capital provincial em uma "expressão da civilização otomana", segundo palavras de Donia, Husrev-beg empregou o plano urbano básico do império para sua ampliação: dividir a cidade em bairros residenciais, chamados mahalas, com uma casa de culto no centro de cada um deles. Antes da chegada de Husrev-beg, Sarajevo tinha somente 3 mahalas muçulmanas; sob sua administração, esse número se elevou para 50. No início do século XVII, havia cerca de 100, juntamente com uma pequena quantidade de mahalas cristãs e judias em uma cidade indiscutivelmente inter-religiosa.

<p><em>Acima:</em> belos livros encadernados com capas de couro em relevo e que datam de vários séculos são numerosos no acervo de 25&nbsp;mil volumes da Biblioteca Gazi&nbsp;Husrev-beg. Em seu centro, encontram-se os livros que Gazi&nbsp;Husrev-beg trouxe com ele ao chegar a Sarajevo como governador da Bósnia (atual Bósnia e Herzegovina) em 1521. <em>Abaixo à direita:</em> Lejla&nbsp;Gazič, ex-diretora do Instituto Oriental de Sarajevo, assistiu impotente à queima de seus livros depois que nacionalistas sérvios bombardearam o instituto na noite de 16 de maio de 1992. Ela ainda tenta entender por que eles atacaram a biblioteca.</p>

Acima: belos livros encadernados com capas de couro em relevo e que datam de vários séculos são numerosos no acervo de 25 mil volumes da Biblioteca Gazi Husrev-beg. Em seu centro, encontram-se os livros que Gazi Husrev-beg trouxe com ele ao chegar a Sarajevo como governador da Bósnia (atual Bósnia e Herzegovina) em 1521. Abaixo à direita: Lejla Gazič, ex-diretora do Instituto Oriental de Sarajevo, assistiu impotente à queima de seus livros depois que nacionalistas sérvios bombardearam o instituto na noite de 16 de maio de 1992. Ela ainda tenta entender por que eles atacaram a biblioteca.

G_SP2_secondary_Mug_HR_crop.jpg?width=350&height=248&ext=.jpg

O coração da atividade comercial e cultural de Sarajevo era o Baščaršija (bach-char-si-ia, ou mercado) bem a norte do rio. Tanto Ishaković como Husrev-beg construíram bezistans (bazares cobertos) nesse local que, ainda nos dias atuais, continua sendo a área de pedestres mais popular da cidade. Mantendo muito do estilo de sua época otomana, o Baščaršija oferece de tudo a seus exploradores, desde coletes com temas do futebol bósnio até tapetes persas, além de novidades posteriores ao cerco, como canetas esferográficas elaboradas com cartuchos de balas recolhidos das ruas. Com cinco quarteirões de extensão, o bezistan de Gazi Husrev-beg é o maior de todos.

Em épocas otomanas, mercadores viajantes se hospedavam em hans, também chamados de karavan-saraj (hospedaria). Essencialmente hotéis de negócios, eles possuíam pátios centrais utilizados como áreas de descarga e estábulo para animais, e quartos na parte superior, onde os comerciantes tinham direito a refeições e alojamento grátis por até três dias. Muitos hans sobrevivem hoje como restaurantes, entre eles o colorido Morica Han, construído por Husrev-beg. No pátio arborizado do han, os turistas de hoje em dia bebem chá, leite ou café bósnio de cor bege, e batem papo com os tranquilos comerciantes de tapete ou cerâmica que trabalham nos estábulos hoje transformados da estrutura histórica.

A maior parte das instituições culturais, econômicas e religiosas da cidade, suas mahalas, mesquitas e hans, recebeu apoio de doações beneficentes conhecidas como vakuf, uma adaptação bósnia do árabe waqf. Os vakufs foram financiados por ricos patronos, muitos deles oficiais militares de alta patente como Husrev-beg, que reuniram fortunas (alguns diriam saques de guerra) após anos de campanha. Dentre todos os vakufs da Bósnia, o de Husrev-beg era o mais rico e abrangente. Além de mahalas, hans e bezistans, o governador financiou a construção de um hammam (banho público), um imaret (cozinha de sopas), um haniqah (um centro de estudos sufi) e uma madraça (escola religiosa muçulmana) à qual chamou Seljuklia, em homenagem ao nome de sua mãe (como seu telhado era feito de chumbo, kuršum em turco, a madraça tornou-se conhecida localmente como Kuršumlija e continua sendo a mais antiga ainda existente da Bósnia e Herzegovina).

No centro de tudo, Husrev-beg construiu uma mesquita que hoje leva seu nome. Elegante com seu minarete fino, telhado com diversas cúpulas e uma torre de relógio, essa é a maior mesquita histórica do país, famosa por ser o exemplo mais refinado da arquitetura islâmica otomana nos Bálcãs. Erguendo-se no coração do Baščaršija, ela permanece como um símbolo da cidade e ponto de encontro para a comunidade muçulmana de Sarajevo – na verdade, de todo o país – que representa cerca de 40% da população nacional atual (seguida de 31% de cristãos ortodoxos e 15% de católicos).

Portanto, foi durante a administração de Husrev-beg que Sarajevo se tornou um reflexo urbano da crença do governador na perene virtude do vakuf.

<p>A leste da nova Biblioteca Gazi&nbsp;Husrev-beg, aberta em 2014, encontra-se a primeira sede da instituição, o complexo de mesquita e madraça do século&nbsp;XVI erguido por Husrev-beg. As colinas em torno da cidade, que serviram de base para atiradores durante o cerco a Sarajevo, são hoje um cenário de cartão postal para seu centro histórico.</p>

A leste da nova Biblioteca Gazi Husrev-beg, aberta em 2014, encontra-se a primeira sede da instituição, o complexo de mesquita e madraça do século XVI erguido por Husrev-beg. As colinas em torno da cidade, que serviram de base para atiradores durante o cerco a Sarajevo, são hoje um cenário de cartão postal para seu centro histórico.

Os livros perdidos durante o cerco ocupavam 440 quilômetros de prateleiras, representando "o maior incidente único de queima deliberada de livros da história moderna".

Tendo esses princípios em mente, em 1537, Husrev-beg decretou na escritura da escola que "todo o dinheiro restante dos gastos com a construção será empregado para comprar bons livros, que serão utilizados na mencionada madraça e por todos aqueles envolvidos no estudo, os quais lerão e transcreverão tais obras".

Os livros comprados nesses termos, juntamente com os manuscritos doados por Husrev-beg, compuseram a biblioteca no momento de sua fundação, cujo acervo cresceu rapidamente. Entre sua coleção cada vez mais notável, encontravam-se conhecidas obras de filosofia, lógica, filologia, história, geografia, línguas orientais, literatura clássica, medicina, veterinária, matemática, astronomia e muitos outros campos de conhecimento. Algumas foram doadas (inclusive bibliotecas privadas inteiras), e muitas foram transcritas, sob determinação de Husrev-beg, por copistas que trabalhavam nos aposentos caiados da madraça e haniqah. Enquanto isso, a poucos metros de distância, na Mudželiti (muz-rel-i-ti) (ou Rua dos Encadernadores), o que surgiu na década de 1530 como um grupo de pequenas lojas de encadernação floresceu até se tornar um bazar completo de livreiros, refletindo o crescimento de Sarajevo como um dos mais férteis centros literários e intelectuais de todo o Império Otomano.

"Nesses complexos religiosos, era muito raro que houvesse somente uma mesquita. Geralmente, eram erguidas diversas construções, e algumas delas tinham, desde seu primeiro momento, um propósito educacional", observou Ahmed Zildžić, estudioso do Instituto Bósnio, um centro de pesquisas para o estudo do passado cultural da Bósnia e Hezergovina sediado no belo e restaurado hammam de Gazi Husrev-beg, hoje com novas funções. "Havia então uma biblioteca lateral ou um pequeno maktab (escritório), algo semelhante a uma escola dominical [cristã], com a função de alfabetizar os eslavos convertidos ao Islã que, depois, passavam a se alfabetizar também em línguas orientais", comentou.

Aproveitando-se ao máximo dos longínquos recursos provenientes da Pax Ottomana, alguns desses jovens e promissores estudiosos se espalharam por todo o império para estudar em seus famosos centros de conhecimento: Istambul, Damasco, Beirute, Cairo, Bagdá, Meca, Medina e tantas outras cidades. De volta à Bósnia, eles levavam consigo mais livros e manuscritos em árabe, turco otomano e persa, e todos enriqueciam ainda mais o patrimônio literário do país e suas bibliotecas, inclusive a de Gazi Husrev-beg. Os livros e manuscritos também eram adquiridos por comércio ou levados por pessoas que concluíam o Hajj, a peregrinação a Meca. Muitas dessas obras importadas foram traduzidas para o bósnio, ainda que os estudiosos locais começassem a produzir cada vez mais de seu próprio estudo islâmico bósnio: tratados e dissertações sobre filologia árabe, direito islâmico, o Corão, entre muitos outros, compostos em seus três idiomas nativos. E à medida que se ampliava esse corpus, crescia também a reputação de Sarajevo como um repositório da cultura bósnia e "um dos mais importantes centros culturais e de estudo da Rumélia", acrescentou Zildžić.

Map-Sarajevo-01.jpg?width=970&height=671&ext=.jpg

Certamente, 1992 não foi a primeira vez que esses tesouros literários estiveram sob ameaça. Abrindo seu caminho até a Bósnia em 1697, o príncipe Eugênio de Saboia da Casa dos Habsburgo prometeu "destruir tudo a fogo e espada", incluindo Sarajevo, a não ser que a ele se rendessem. Fiel à sua palavra, e conforme registrou em seu diário militar, "[n]ós deixamos a cidade e toda a área a seu redor em chamas". Esses "infiéis austríacos", como relatou um anônimo de Sarajevo, pareciam especialmente decididos a destruir as instituições islâmicas da cidade: "[E]les queimaram livros e mesquitas, assolaram mihrabs [nichos de oração nas mesquitas] e a bela Šeher-Sarajevo, de ponta a ponta".

No final do século XIX, um incêndio arrasou muitas das construções da cidade, limpando literalmente o caminho para que arquitetos alemães remodelassem Sarajevo à imagem do Império Austro-Húngaro durante sua dominação de quase 33 anos, iniciada em 1885 sob o imperador Franz Joseph i (uma exceção a essa estética modernista precoce foi a prefeitura da cidade, concluída em 1894 em estilo neomourisco e que, mais tarde, viria a se tornar a Biblioteca Nacional).

Mais famoso que a queima de livros desse período foi o assassinato – em 28 de junho de 1914 à base da Ponte Latina, poucos metros a oeste da Ponte do Imperador – do arquiduque da Áustria Francisco Fernando e sua esposa Sofia, duquesa de Hohenberg. O incidente foi o estopim para a Primeira Guerra Mundial, que ironicamente poupou Sarajevo. Mas a cidade não teve a mesma sorte durante a Segunda Guerra, quando foi bombardeada tanto pelo exército alemão como pelos Aliados.

Apesar de tudo, a Biblioteca Gazi Husrev-beg continuou crescendo, a ponto de precisar mudar de local para expandir-se por duas ocasiões antes da Segunda Guerra Mundial. A primeira mudança ocorreu em 1863, para uma sala construída com essa finalidade do outro lado da rua, à base do minarete da Mesquita Gazi Husrev-beg. Em 1935, o acervo superou novamente o espaço da biblioteca, que foi transferida para o porão do escritório do mufti (estudioso islâmico mais proeminente da cidade) de Sarajevo, localizado na outra margem do rio e próximo à Mesquita do Sultão. Finalmente, o mufti desocupou todo o edifício de seu escritório para acomodar a crescente coleção.

<p>Para transportar os livros de uma &quot;biblioteca segura&quot; a outra durante o cerco, Jahić e seus companheiros utilizavam frequentemente caixas de banana, que ainda hoje é um método comum para armazenar e transportar livros no mercado a céu aberto de Sarajevo.</p>

Para transportar os livros de uma "biblioteca segura" a outra durante o cerco, Jahić e seus companheiros utilizavam frequentemente caixas de banana, que ainda hoje é um método comum para armazenar e transportar livros no mercado a céu aberto de Sarajevo.

No início dos anos 1990, a Biblioteca Gazi Husrev-beg se tornou uma das mais valiosas dos Bálcãs, com cerca de 10 mil manuscritos em árabe, persa, turco otomano e eslavo bósnio de escritos árabes, conhecidos como arebica ou aljamiado. Seu manuscrito mais antigo e precioso é uma cópia de Ihya'ulum al-din (O renascimento da ciência religiosa), obra escrita em 1105 por al-Ghazali. Outro tesouro é Tufhat al-ahrar (O presente ao nobre), uma poesia didática do autor clássico persa do século XV Nur al-Din ‘Abd al-Rahman, elaborado com caligrafia excepcionalmente bela em Meca, no ano 1575. Igualmente significativas são as cópias com encadernação decorativa do Corão que residem na biblioteca, as quais serviram de modelo para copistas. Muitos desses volumes produzidos com grande beleza possuem capas de couro em relevo, páginas ricamente adornadas com caligrafia e bordas decorativas em cores índigo, dourada e vermelho-tijolo.

Entre seus 25 mil livros estão as mais antigas obras impressas (desde meados do século XVIII) por alguns dos autores mais prolíficos em línguas orientais, além dos mais antigos em idioma bósnio e vários dos primeiros livros produzidos pelo autor de origem húngara Ibrahim Müteferrika que, de 1674 a 1745, se tornou o primeiro muçulmano a operar uma imprensa com tipos móveis em árabe. A coleção de periódicos da biblioteca inclui os mais antigos jornais da Bósnia, além de praticamente todos os jornais e periódicos muçulmanos publicados no país, atuais e históricos, incluindo um conjunto quase completo de Bosna, o antigo diário oficial da eyalet, publicado de 1866 a 1878. Além disso, há cerca de 5 mil firmans (decretos reais) e berats (alvarás e licenças) otomanos; registros da corte sharia local conhecidos como sijjils; defters (registros fiscais); e também fotografias, panfletos e cartazes.

"Livros censitários, livros fiscais, registros governamentais: são todos fontes indispensáveis para quem deseja estudar a história de qualquer grupo religioso ou étnico dos Bálcãs, e não apenas muçulmanos", comentou Zildžić.

Como acréscimo a esse conjunto de valor incalculável, antes da Guerra da Bósnia, havia as coleções da Biblioteca Nacional e da Biblioteca da Universidade da Bósnia e Herzegovina, perto da antiga prefeitura e do Instituto Oriental, fundado em 1950. Juntas, essas duas instituições possuíam aproximadamente 2 milhões de volumes, 300 mil documentos originais e 5.263 códices (coleções encadernadas de manuscritos). Juntamente com a Biblioteca Gazi Husrev-beg, todo esse precioso acervo, o corpo, se não a alma, do patrimônio cultural e intelectual da Bósnia, concentra-se em alguns poucos quilômetros quadrados da cidade, pronto para ser atacado. Ciente dessa vulnerabilidade, Jahić moveu preventivamente o acervo de Gazi Husrev-beg dos escritórios do mufti para o outro lado do rio ao seu lar original, a Kuršumlija, onde acreditava que os livros estariam mais seguros.

<p><em>Acima</em>: Sarajevo mantém-se como uma cidade de bibliófilos. Aqui, moradores e visitantes exploram uma feira de livros durante o Ramadã. <em>Abaixo à direita</em>: lembranças turísticas brilham na vitrine de uma loja do <em>bezistan</em> (bazar) no Baščaršija, centro comercial e cultural de Sarajevo.</p>

Acima: Sarajevo mantém-se como uma cidade de bibliófilos. Aqui, moradores e visitantes exploram uma feira de livros durante o Ramadã. Abaixo à direita: lembranças turísticas brilham na vitrine de uma loja do bezistan (bazar) no Baščaršija, centro comercial e cultural de Sarajevo.

R_SP4_Detail_HR.jpg?width=400&height=266&ext=.jpg

E sua decisão demonstrou ser bastante prudente. Na noite de 16 de maio de 1992, foram iniciados os ataques a poucos quarteirões da Mesquita do Sultão.

O bombardeio do Instituto Oriental marcou a abertura de uma guerra não só contra pessoas, mas também contra seus pensamentos, ideias e identidade cultural. Em busca de criar um Estado unificado e monoétnico a partir dos escombros da Iugoslávia pós-comunista, os nacionalistas sérvios estavam determinados a varrer do mapa da Bósnia e Hezergovina a cultura bósnia e croata.

O cerco de Sarajevo, que durou três anos, viria a se tornar o mais duradouro cerco a uma capital na história da guerra moderna. Fincando posições nas montanhas ao redor, os sérvios atacaram Sarajevo noite e dia. Durante os intervalos entre bombardeios, os atiradores observavam e esperavam para alvejar pedestres que surgissem do caos, desesperados por comida, água e combustível. Cartazes com os dizeres Pazite, Snajper! ("Cuidado, atiradores!") estavam por toda parte, como verdadeiros papéis de parede. Dessa forma, em meio ao esforço decidido da agressão sérvia em erradicar toda uma cultura, os alvos principais de assassinato eram os professores universitários de filosofia, juntamente com a destruição de seus escritos e aqueles de seus antecessores. "O cerco de Sarajevo" – observou o acadêmico bósnio András J. Riedlmayer uma década depois do conflito – "resultou no que pode ser o maior incidente único de queima deliberada de livros da história moderna".

Na manhã de 17 de maio daquele mesmo ano, enquanto o Instituto Oriental ainda ardia em chamas, a ex-diretora Lejla Gazič correu para o local com a esperança de salvar o que pudesse, mas os bombeiros a impediram. O edifício não só estava instável, mas continuava sendo um alvo, uma vez que os sérvios seguiam atirando nos homens que combatiam o incêndio. Relembrando aquele terrível dia, Gazič ainda não consegue compreender completamente aquele episódio.

"Pessoas matam pessoas em guerras, isso eu posso entender", disse. "Mas assassinar livros é algo inimaginável. Os livros são um patrimônio que pertence a todos, em qualquer lugar. Como alguém é capaz de matá-los?".

Os livros perdidos durante o cerco ocupavam 440 quilômetros de prateleiras, representando "o maior incidente único de queima deliberada de livros da história moderna".

No entanto, o inimaginável ficou ainda pior. Três meses mais tarde, Gazič e seus colegas de Sarajevo assistiram novamente horrorizados, uma hora depois do anoitecer de 25 de agosto, às forças sérvias destruírem a Biblioteca Nacional com um ataque de bombas de fósforo. Como já haviam feito durante a destruição do Instituto Oriental, os combatentes sérvios localizados nas colinas "salpicaram a área em torno da biblioteca com tiros de metralhadora, tentando assim impedir que os bombeiros combatessem o fogo", de acordo com o repórter da Associated Press John Pomfret, que esteve presente no episódio. Porém, enfrentando bravamente o fogo de franco-atiradores, bibliotecários e cidadãos voluntários formaram uma corrente humana e moveram todos os livros que puderam coletar do edifício em chamas. Mas quando o calor explodiu as finas colunas mouriscas da estrutura e o telhado veio abaixo, passou a ser tarde demais: o valioso acervo da biblioteca tinha se perdido.

"A luz do sol foi obstruída pela fumaça produzida pelos livros, e por toda a cidade papel queimado, frágeis páginas em cinzas, flutuavam como uma neve negra e suja", relembrou mais tarde um bibliotecário. "Ao agarrar uma daquelas páginas, era possível sentir o calor e, por um momento, ler um fragmento do texto em um estranho tipo de negativo em preto e cinza, até que o calor se dissipasse e a página se desfizesse em pó sobre a sua mão."

Indagado por Pomfret por que ele arriscou sua vida contra todas as probabilidades, o chefe da brigada de incêndio Kenan Slinič – "suado, coberto de fuligem e a menos de dois metros do incêndio" – respondeu: "Porque eu nasci aqui, e eles estão queimando uma parte de mim".

Jahić compreendeu essa intensa devoção. Com 38 anos de idade quando começou a guerra, ele já ocupava o cargo de diretor da Biblioteca Gazi Husrev-beg por cinco anos quando o cerco teve início. Durante essa verdadeira provação, Jahić cumpriu rigorosamente seu dever indo e voltando todos os dias da semana entre as paixões de sua vida: sua esposa e filhos, e a biblioteca. Aquele era um deslocamento muito perigoso. Sua casa ficava a apenas 500 metros das linhas sérvias, e sua família era forçada a se esconder no porão durante a maior parte do dia. Para reduzir o risco de ser alvejado por atiradores ao longo de seu trajeto diário de sete quilômetros, ele serpenteava entre as sepulturas do cemitério, agachando-se para obter proteção atrás das largas e planas lápides dos setores cristãos, que forneciam melhor cobertura do que as finas lápides muçulmanas.

<p>Pessoas caminham pela Rua Sarači, uma via de pedestres no Baščaršija que percorre de leste a oeste centenas de anos da história da cidade. A nova Biblioteca Gazi&nbsp;Husrev-beg e sua localização original em Kursumlija localizam-se bem perto dali.</p>

Pessoas caminham pela Rua Sarači, uma via de pedestres no Baščaršija que percorre de leste a oeste centenas de anos da história da cidade. A nova Biblioteca Gazi Husrev-beg e sua localização original em Kursumlija localizam-se bem perto dali.

Comprometido com seu trabalho e em prosseguir com uma vida normal como pudesse considerando as circunstâncias, Jahić manteve o máximo possível o acervo da biblioteca disponível a estudiosos. No entanto, ele tinha consciência de que o sérvios sabiam onde ela estava, o que o fez mover as obras de lugar. Após a destruição do Instituto Oriental e da Biblioteca Nacional, ele teve a certeza de que deveria manter o acervo em movimento se quisesse poupá-lo do mesmo destino.

"Eu sabia que os sérvios estavam determinados a destruir completamente o patrimônio cultural da Bósnia", explicou Jahić. "Assim, para que o inimigo não soubesse o local da biblioteca, fiz contato com amigos e outros bibliotecários, e consegui a ajuda deles para transportar o acervo de um local a outro durante toda a guerra."

De 1992 a 1994, Jahić e seus fiéis e dedicados colegas – entre eles um voluntário da equipe de limpeza e um guarda noturno da biblioteca – moveram o acervo oito vezes no total, mudando sua localização a cada cinco ou seis meses. Durante o conflito, ele depositou os itens mais valiosos, como a obra de al-Ghazali e outros manuscritos raros, no cofre do banco Privredna, localizado perto do centro da cidade. Mas a maior parte do acervo foi transportado manualmente de um lugar a outro, geralmente dentro de caixas de banana, por ele e seus companheiros, como estudantes universitários entrando e saindo de um dormitório.

O primeiro esconderijo foi o local original da biblioteca, a Kuršumlija. Em seguida veio uma mudança para um local vizinho, a maior e "nova" madraça, construída durante o período austro-húngaro. A mudança dos livros entre esses locais, para o outro lado do rio sobre a Ponte do Imperador, foi considerada por Jahić uma das mais perigosas de todas.

"Esta ponte era um alvo fácil para os atiradores situados ali em Trebević", disse posicionado no meio da ponte e olhando para o elevado rochoso.

Em seguida, um fluxo de refugiados provenientes de áreas próximas que solicitavam abrigo na madraça forçou Jahić a mover novamente as obras para o interior úmido do antigo quartel do corpo de bombeiros, onde definharam por vários meses em um campo de tiro subterrâneo e fora de uso, um cenário difícil de ser imaginado como ideal para guardar livros raros. Mas ele sabia que deveria empregar todos os recursos disponíveis para manter-se um passo adiante da milícia sérvia. Duas outras mudanças se seguiram em 1993: para os camarins do Teatro Nacional e, depois, para as salas de aula da madraça feminina, não muito distante do quartel de bombeiros. Jahić pensava o tempo todo à frente das intenções de seus inimigos.

Ainda que a biblioteca parecesse estar relativamente segura naquele momento, ele percebeu que poderia ser incendiada a qualquer instante. Assim, para garantir seu conteúdo intelectual e também físico, começou a microfilmar integralmente seu acervo. Por si só, esse já parecia um projeto monumental, mesmo com todo o prazo do mundo, mas Jahić ainda teve de lidar com interrupções no fornecimento de eletricidade e a falta de água corrente para o processamento dos filmes. Além disso, não havia nenhum equipamento realmente apropriado, e ele não sabia como isso funcionaria depois que alcançasse seu intento. Como se não fosse o bastante, tudo foi feito sob o fogo inimigo. Um bibliotecário mas fraco poderia ter vacilado ou nem mesmo começado. Mas Jahić, enérgico e criativo, compreendeu plenamente o que estava em jogo e, como muitos insurgentes antes dele, recorreu aos subterrâneos.

"Providenciamos equipamentos de microfilme por contrabando através do túnel", disse, referindo-se ao túnel de 700 metros escavado à mão sob o aeroporto de Sarajevo. Durante a guerra, essa estreita passagem de um metro por um metro que ligava uma garagem particular ao subúrbio de Dobrinja, provou ser vital para o transporte de comida e suprimentos aos 400 mil habitantes sitiados de Sarajevo e forneceu a única rota de fuga da cidade.

Com a ajuda de um técnico local de microfilmagem e sua equipe contratada, Jahić começou a fotografar o melhor que podia. Apesar de todas as dificuldades, a equipe pôde microfilmar 2.000 manuscritos durante o conflito.

"Isso foi um problema, porque havia apagões frequentes. Assim, usamos baterias de automóveis para fornecer energia sempre que faltasse eletricidade", relembrou. A água de que precisavam foi extraída do Miljacka. Mas os recursos tornavam-se cada vez mais escassos.

"Comida, água e madeira. Essas eram as três coisas mais importantes durante o cerco", disse Jahić, relembrando que luxos como as prateleiras de madeira da biblioteca estavam entre os primeiros itens retirados pela população como lenha durante a crise, seguidas das árvores de todos os parques da cidade, que se transformaram em vastos campos vazios de tocos cortados.

U_SP5_L_HR.jpg?width=400&height=266&ext=.jpg
T_SP5_L_HR.jpg?width=400&height=266&ext=.jpg

À esquerda: os trabalhos de restauração de um documento no laboratório de preservação de livros da biblioteca, parte do complexo bibliotecário ampliado de nove milhões de dólares, que ressurgiu como fênix após o cerco para ser inaugurado no ano passado. À direita: as obras exibidas incluem este fac-símile do manuscrito mais antigo da biblioteca, O renascimento da ciência religiosa, obra de 1105 escrita por al-Ghazali.

O deslocamento das obras era arriscado não só devido aos franco-atiradores. Em uma ocasião, enquanto percorriam as ruas bombardeadas com suas caixas de banana repletas de livros, Jahić e sua equipe se depararam com um bando de jovens. A gangue os abordou, pensando estar diante de uma carga de bananas, um luxo extravagante em um período em que itens básicos como pão eram um prêmio.

"Mas quando eles olharam dentro daquelas caixas e viram que havia somente livros, jogaram-nas no chão e seguiram seu caminho", relembrou.

Certamente, nem Jahić nem sua equipe tinham em mente participar de confrontos com gangues de rua. Mas como os bombeiros que travaram suas batalhas perdidas contra edifícios em chamas, eles viram que estavam desempenhando não só um dever patriótico, mas sua obrigação perante a humanidade.

"Claro que valia a pena arriscar a minha vida por isso", afirmou mais tarde o guarda noturno da biblioteca Abbas Lutumba Husein aos produtores do documentário da BBC de 2012 "O amor pelos livros: uma história de Sarajevo" ("The Love of Books: A Sarajevo Story"). Um imigrante nascido no Congo, onde cresceu cercado de violência e conflito, Husein disse que sua vida havia sido transformada pela leitura do Corão. Durante seu trabalho noturno na biblioteca, ele buscava conforto na leitura dos livros, sentindo a presença de seus autores e sentindo-se em paz entre eles. A biblioteca "salvou a minha vida", declarou. Ele concluiu dizendo que teria preferido "morrer junto com os livros do que viver sem eles".

<p>Uma família prepara-se para quebrar o jejum do Ramadã com um piquenique no antigo Forte Amarelo, a norte do rio Miljacka, enquanto outros moradores da cidade apreciam um tranquilo pôr do sol.</p>

Uma família prepara-se para quebrar o jejum do Ramadã com um piquenique no antigo Forte Amarelo, a norte do rio Miljacka, enquanto outros moradores da cidade apreciam um tranquilo pôr do sol.

Em 1995, quando o cerco foi encerrado, a biblioteca retornou à madraça feminina, e Jahić continuou realizando o trabalho de digitalização, microfilmagem e catalogação de todo o seu conteúdo para preservá-lo e evitar que pudesse voltar a ser ameaçado. A catalogação foi concluída em 2013 e publicada com o apoio da Fundação do Legado Islâmico de al-Furqan, com sede em Londres. Agora, os itens mais importantes do acervo da biblioteca estão completamente digitalizados.

No início da década de 1990, já era discutida a criação de um novo edifício para abrigar o continuamente crescente acervo da biblioteca, mas o projeto teve de ser postergado devido à guerra. Finalmente, foi contratado um arquiteto (veja o quadro lateral acima) e, em 2014, foi aberta a nova Biblioteca Gazi Husrev-beg, graças a uma grande doação do governo do Catar. A estrutura resplandecente de três andares de vidro e mármore, bem em frente ao local da biblioteca original, hospeda 500 mil volumes, salas de leitura, uma sala de conservação e um auditório de 200 lugares com fones de ouvido conectados por internet sem fio em cada assento para receber tradução simultânea em até três idiomas. No porão, há também um museu dedicado à história literária da Bósnia.

Contudo, no coração da estrutura de alta tecnologia estão os livros, todos eles referidos por Jahić – hoje um professor residente – como seus próprio filhos.

"Durante a guerra, tentei salvar tanto a minha família como a biblioteca", comentou. "Durante o processo, passei a amar os livros. É difícil para mim falar sobre eles agora sem sentir uma grande emoção."